segunda-feira, 15 de março de 2010

Septuagenário como o próprio Mercadão >> surely not an ordinary man, nor an ordinary place



Às seis horas da manhã, a Rua da Cantareira, no centro de São Paulo, recende a fim de feira. Carrinhos de ferro abarrotados de caixotes de madeira vazios são empurrados por sujeitos maltrapilhos em direção a caminhões de carga e descarga estacionados perto dali. Pelo chão, restos de fruta e comida se misturam a folhas secas de alface e guimbas de cigarro. Tudo é cinza enquanto o sol não surge por detrás da monumental fachada do Mercado Municipal. Abençoado por Ceres, deusa da Agricultura, cuja imagem desponta acima dos portões de entrada, um homem de semblante cansado leva, em contrafluxo, um carregamento de frutas para o interior do galpão.

No teto abobadado, painéis de vidro retratam o trabalho de colonos no cultivo de alimentos e a atração animal no arado e no transporte. Os olhos fixam-se na abundância de cores vitrais, até serem interrompidos por um inebriante cheiro de folhas de uva, tahine e ervas finas de uma quitanda próxima. Uma profusão de aromas se sucede ao longo das cerca de 300 quitandas, açougues e mercearias que ocupam os doze mil e seiscentos metros quadrados do mercado divididos em ruas de A a K. Na cornucópia gastronômica, vende-se de queijos, azeites, frutas desidratadas e doces árabes até carne exóticas, como javali e jacaré, passando por camarões secos, cordeiro, especiarias, sanduiches de mortadela e sacas de grãos de soja, aveia, girassol e linhaça.

Segurando um saquinho de chá matte com limão – o seu preferido – que se dissolvia na água fervente de um copo de vidro da Cafeteria da rua F, seu Raffaelle conversa animadamente com os que estão ao redor. Os simpáticos olhos castanhos atentos aos passantes, ele parece estar pela primeira vez no lugar em que trabalha há 60 anos, metade deles como empregado, a outra como patrão. Nascido na Itália em 1933, Angelo Raffaelle é tão antigo quanto o entreposto comercial que foi inaugurado naquele mesmo ano. Passou por alguns apertos, como na enchente de 64 onde perdeu quase toda sua mercadoria. “Nada tão ruim quanto a época do Collor e o congelamento das poupanças”, pondera.. “O Tio do Roni (uma das queijarias mais tradicionais do mercado) não aguentou, morreu do coração”.

Só estudou até o quinto ano do ensino básico. Trabalhava das 4h às 18h naquele que era o principal entreposto comercial paulistano até os anos 80. Com o aparecimento dos supermercados e do Ceasa, as vendas caíram pela metade. Seu estoque de grãos e frutas secas que renovava a cada três dias, hoje não se esgota em menos de uma semana. Apesar disso criou três filhos com conforto. No empório de 25 metros quadrados que mantém no Box num.1 à Rua B comercializa mais de 300 variedades de produtos com o auxilio do filho do meio, Pasquale, de 46 anos. As despesas com aluguel, condomínio, água e luz chegam aos 9 mil reais mensais.

Pasquale não se conforma com o mezanino construído no mercadão em 2oo4 para abrigar restaurantes. “As pessoas passam horas comendo lá em cima e quase não compram com a gente”, diz, se apressando em atender ao terceiro comprador em pouco mais de duas horas. Antes das 9h, o movimento é fraco. “Nem mosca aparece”, murmura um Raffaello compenetrado na limpeza e organização de uma porção de potes de grãos nas prateleiras, as plaquinhas de preços meticulosamente viradas pra frente, com o mesmo esmero de um bibliófilo a organizar títulos numa estante.
“Às vezes aparece uma branquinha”, brinca Pasquale.

“Mosca branca?”, indaga a senhora rechonchuda que comprava um coquetel de grãos porque viu na televisão que linhaça e aveias fazem milagres ao coração e ajudam a emagrecer. “É, gente com dinheiro, coisa muito rara hoje em dia”, responde Pasquale. Seu Raffaelle endossa o couro. “Tem mais turista que comprador”. Como isso afetará o futuro do Mercadão? Como influirá nas vendas? Seu Raffaelle balança negativamente a cabeça e desconversa. Com o entusiasmo que lhe é característico exibe orgulhoso a aliança em ouro de cinquenta anos de casado, completos há um mês. O casal comemorou a efeméride com uma viagem de dez dias ao Rio de Janeiro, onde hospedou-se no Marriot Hotel, em Copacabana, com vista privilegiada pro mar, pela bagatela diária de 447 dólares. Nada mal.