domingo, 2 de novembro de 2008

tempo de cão

Há dois meses, David Lynch veio ao Rio lançar o seu livro “Em águas Profundas: Criatividade e meditação”. De tudo o ( pouco) que li das entrevistas com o cineasta nesse período, guardei duas linhas em especial. Cito-as de memória. " Há um certo charme em seres que não conseguem se comunicar plenamente. É por isso que ninguém resiste a animais domésticos e bebês ". Temos um exemplar do primeiro tipo em casa, e o rapaz é tão bom de faro que escolheu para dona a moça do lar mais pronta para compromisso e cheia de amor para dar: mi madre. Eu disse pra ele: " És bom demais para mim monsieur. Saibas que alguém de tua estirpe, da nobre linhagem dos poodles, não merece menos que uma mademoiselle à altura, que leia poesia enquanto dormes. Acredites, meu anjo, la poesie est le triomphe de l'Amour ". E a coisinha acreditou.

Qualquer pessoa que já tenha tido um desses sabe que são necessárias doses diárias e constantes de atenção. Basta o dono sair de casa e voltar logo em seguida passados 10 minutos que para ele foi como se tivessem passado 20 anos. Os cães não têm noção do tempo. Quando o dono sai de casa, os peludos não percebem que ele irá voltar. A única coisa que sabem é que ele foi embora e não está ali. Na ausência, não têm a memória do que falta, apenas a sensação de que falta. Experimentam o abandono momentâneo sem sequer pressentir que sua orfandade é temporária. É quando lhes surge à frente o dono que têm noção do que lhes faltava. E quando este volta, é obrigado a repetir exatamente e sistematicamente as mesmas exclamações de surpresa e felicidade, como se fosse a primeira vez, e não a milionésima, que lhe diz "quem é a coisa mais rica do mundo, quem é?", acompanhado de festinha efusiva e massagens atrás das orelhas. A propósito destas massagens, se bem aplicadas, podem causar convulsões reflexas nas patas ou pernas traseiras. Mas nada de susto, não é epilepsia, é só prazer incontrolado. Irresistíveis? Talvez. Já se saber fonte de todo esse prazer é irresistivelmente bom demais para negar.