quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Vida longa ao Largo


Estas casinhas coloridas aí são parada obrigatória para os turistas que visitam o Corcovado e pegam o trenzinho na estação Cosme Velho. A uns vinte metros delas, passa o o rio que empresta seu nome aos nascidos na cidade, o Rio Carioca. Só esse batismo geográfico gratuito, por assim dizer, já deveria servir de argumento suficiente para obrigatóriamente nos atrair à todos. Mas nem todo mundo que passa à rua Cosme Velho repara no pequeno beco sem saída perto do túnel Rebouças que parece ter parado no tempo. Aqui, do conforto de minha cadeira giratória, confesso, com as bochechas devidamente quentes e vermelhas, que só pus os pés alí, na manhã de ontem, para fazer uma matéria sobre uma possível revitalização do espaço. Não fosse isso, ainda estaria em déficit com os espíritos dos índios tamoios que viveram lá há muito, muito tempo. Com calçamento em estilo pé-de-moleque, telhados e fachadas do início do século XX, árvores centenárias e o murmurar incessante do riacho, o Largo do Boticário, no sopé da mata atlântica, transborda ares de Rio antigo. Mas, como tantas outras partes históricas da cidade, o abandono e a degradação ameaçam a conservação das suas oito casas históricas, que são tombadas pelo estado. Para terem uma idéia, num primeiro momento, não reconhecemos o velho rio pelo seu shuá shuá característico, mas pelo cheiro fétido que emana. Além disso, a mansão de número vinte - outrora fora lar da lendária família Bittencourt, dona do extinto jornal "Correio da Manhã" - chegou a ser invadida e ocupada famílias de sem-teto em julho de 2006, que de lá só foram retiradas em janeiro deste ano por força de uma liminar da Justiça. Contra-tempos à parte, a boa nova é que após anos de abandono o Largo poderá voltar ao circuito carioca de visitação e resgatar sua antiga beleza. Trocando em miúdos, a única herdeira dos Bittencourt - uma senhora na casa dos oitenta e poucos anos que, dizem as más línguas, anda mais pra lá do que pra cá -, finalmente resolveu seguir a música e passar à diante. Não ela, as casas. O conjunto arquitetônico foi posto à venda; já há compradores interessados e um projeto de arquitetura para renovação do espaço assinado por Elizabeth de Portzamparc está a todo vapor, pronto para saltar do papel. A arquiteta foi contata pelo representante da herdeira para realizar estudos de viabilidade que abrangem a transformação do Largo tanto em um pequeno complexo de "charmosas" pousadas como em um centro ecológico. Señores, do alto do meu conhecimento sobre aquelas bandas, que és muy, muy pequeño, penso que ambas as iniciativas são nobres. Além de valorizarem a vocação turística da região, podem revitalizar a vizinhança. Vejam, basta atravessarmos a rua que topamos com o lendário Casarão dos Abacaxis - doce lar da crítica de teatro Barbara Heliodora, não menos lendária-, a casa de Austregésilo de Athayde, que abriu mês passado para atividades culturais, o museu de Arte Naïf, etc, etc...É certo que serão necessárias adaptações para uso comercial do Largo, e todas serão muito bem-vindas desde que salvaguardadas as integridades física e estética daquelas construções, ou seja, suas fachadas devem ser preservadas, e não transformadas em mais um estilo pós-isso ou pós-aquilo. Se neoclássicas são, neoclássicas devem permanecer. De resto, tudo o que vier será lucro. Não vamos nem falar dos porquês para a iniqüidade de ações públicas, mas é de fazer chorar o abandono daquilo tudo. Há história solidificada naquelas fachadas, berrando, pedindo aos prantos para ser preservada. Por isso, todo projeto que contribua para a recuperação do Largo tende a contar com meu singelo apoio. E todo esse post foi um desabafo, sabem. Um singelo desabafo de uma citadina, dita carioca, que não conhece bem sua cidade - algo indefensável, ela reconhece –, mas que há poucas horas deu de cara num concreto prenhe de história do Rio Antigo. Entrou num beco sem saída, mas saiu feliz por reconhecer o quão ainda é ignorante . Mas doeu, viu, tá latejando até agora..

terça-feira, 21 de outubro de 2008

David Foster Wallace

O escritor americano David Foster Wallace suicidou-se mês passado, aos 46 anos. Nunca li nada dele, mas já li muito sobre ele - "the best mind of his generation", de acordo com o The New York times. A impressão de quem já o leu é que ele poderia escrever sobre absolutamente qualquer coisa, usando o tom que lhe conviesse. Dei um pulo na livraria atrás de Breves entrevistas com homens hediondos, primeira e única obra do autor no país, lançada pela Cia. das Letras. Não obstante comentários entreouvidos por aí, de que começar a ler Wallace por esse livro é como chegar a uma festa em que todo mundo já comeu, bebeu e cantou parabéns, resolvi comprar um exemplar, motivada, em grande medida, por um discurso dele publicado na Piauí deste mês. Posso estar enganada, mas acho que se trata da única reação da imprensa escrita brasileira à morte de David Foster Wallace (mais um atestado da mediocridade do nosso jornalismo cultural). Adorei esse discurso. É a síntese do que todos que têm o mínimo de sensibilidade e consciência disso a que chamamos “vida em sociedade” sentem ou já sentiram em algum momento da existência. O discurso de Wallace me pegou pelo intelecto e pelas entranhas. Fiquei com a sensação de que seu experimentalismo vai além de um mero jogo de artifício realizado no vazio, ele suscita sensações no leitor, e isso já me deixou desejosa de conhecer sua literatura, ainda que seja pelo último docinho da festa.

A leitura do discurso é obrigatória. Abaixo, um trecho:

" Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: 'Isto é água, isto é água.'"

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Kunst öffnet die Augen,


ou, traduzindo, “A Arte abre os Olhos”, é a inscrição de um dos 53 cartazes do designer alemão Pierre Mendel, em exposição na Caixa Cultural, aqui do Rio. Dei uma passada no espaço para conferir, achei curiosa a foto divulgação da mostra: um senhor de idade, com cabelos grisalhos, segura um cartaz como se feito prisioneiro das formas singelas. A imagem é a de um homem com o coração apaixonado, tão alegremente amarrado aos constituintes do universo gráfico, que parece ter encontrado, aí, a máxima expressão de liberdade, traduzindo-a em simplicidade. Trabalho árduo este, o de comunicar de forma simples, de comunicar simplesmente. Não é preciso falar alemão para compreender o que Mendell diz, basta ter olhos e coração alinhados para a magia acontecer, afinal, Kunst öffnet die Augen.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Pour l'amour de l'art

Em literatura, quando a narrativa se sofistica a ponto de me surpreender, tenho a sensação de que estou diante de um autor inteligente, que sabe lidar com um elemento básico para a boa ficção. Mas, se o sujeito não se presta ao ofício, sob hipótese alguma deve sair por aí tentando surpreender possíveis leitores. E se a investida partir de um profissional de imprensa, então, torna-se indefensável. Seu texto "surpreendente" servirá, nada mais, do que ao escárnio e à galhofa dentro de uma redação - o que acontece freqüentemente na minha. Hoje, tivemos a piada do dia. E a diversão foi tamanha que, generosa que sou, compartilho-a com vocês. Trata-se de um release sobre uma exposição de arte, no qual o processo de criação do artista é descrito de maneira incomum, ridícula até. Entendam o ridículo aqui como algo que faz rir. Portanto, o trecho que segue é trés ridículo. Um dos repórteres, quando "surpreendido" pela pérola caiu na gargalhada depois de anunciar, com tom de zombaria, sua conclusão.−Ué, gente, ele faz sexo com a tela, só pode!. Leiam, divirtam-se e guardem consigo as conclusões.

Para executar seu trabalho, Rafael coloca as telas em posição horizontal, e se debruça sobre ela, em movimentos repetitivos de vaivém. “Tenho compulsão pelo movimento”, admite, atribuindo o fato ao seu passado “constitutivo e construtivo”.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Felicidade


Acordei meio piegas hoje. Acordei pensando no amor. Carolina diz que não dá pra descrever o amor sem soar um pouco piegas. Carolina é uma grande amiga minha, e não é fácil descrevê-la. Mas também não vim aqui falar de Carolina. Vim falar de amor, e de Charles Chaplin. Melhor, deixarei que ele fale por mim. Já mencionei que nascemos no mesmo dia? Li em algum lugar que 16 de abril é o dia do riso. Bom, em 1985 certamente foi o dia do alívio para minha mãe, mas enfim..não vim falar de risos, tampouco da senhora minha mãe. Como disse, vim falar de Chaplin e de seu amor por uma mulher, Oona. Quando se casaram, em 1943, ele tinha 57 anos e ela 17,nada mal, não? Viveram juntos até sua morte aos 88 anos. Um casamento longo e feliz, com 8 filhos. Agora, por favor, façam silêncio que Charles Spencer Chaplin Jr. - saído da última página de sua auto-biografia Minha Vida - vai falar. É como segue:
Afirmou Schopenhauer que a felicidade é uma condição negativa. Discordo. Nos últimos vinte anos conheci o que significa a felicidade. Tenho a boa fortuna de estar casado com uma criatura maravilhosa. Bem quisera escrever mais sobre isso, porém é de amor que se trata, e o perfeito amor é a mais bela das frustrações, pois está acima do que se pode exprimir. Na convivência com Oona, não cesso de apreciar, através de novas revelações , a profundidade e a beleza do seu caráter. Até quando ela vai à minha frente pelas calçadas estreitas de Vevey, com ar tão simples e tão digno, a sua harmoniosa figurinha erecta, os negros cabelos puxados para trás e mostrando alguns fios de neve, desaba sobre mim uma onda de amor e de admiração por tudo que ela é...e sinto um aperto na garganta. No gozo de tal felicidade, sento-me às vezes em nosso terraço, ao crepúsculo, e com o olhar a se estender sobre a vasta pradaria verde, contemplo o lago e, além do lago, as montanhas tranqüilizadoras; então, sem nada pensar, alheio a tudo, entrego-me prazeroso a essa magnífica serenidade.

domingo, 25 de maio de 2008

Isso é Cultura

Tive uma professora de Literatura, nos tempos de colégio, que costumava dizer que quem gosta de literatura simpatiza com a idéia de que as possibilidades de conhecimentos são infinitas. Ou seja, de que não é humanamente possível conhecer tudo sobre determinado assunto. Bom, até aí tudo bem. Ninguém é tão sabichão assim, responda rápido: Sri Jayawardenapura-Kotte é a capital de que país? Tic-tac, tic-tac, bén! Tá vendo?, não dá pra saber tudo. O que incomoda de verdade, na minha opinião, são as possiblidades infinitas.

Por mais inebriante que seja mergulhar num bom livro, sempre me ocorre um sentimento de frustração quando virada a página derradeira. Millôr Fernades, em texto na Veja desta semana, resumiu (melhor que a tia da escola)a sensação: “Quando leio um livro, e leio com toda atenção, terminada a leitura entendi ou guardei apenas 10% do que li. E ampliei 90% o universo da minha ignorância. Isso é Cultura ”. Melhor explicação não há.

Quanto à questão, a resposta é Sri Lanka . Wikipedia,wikipedia...

domingo, 13 de abril de 2008

Perdas inerentes

O Prosa e Verso do Globo deste sábado (que veio meio chocho, com cara de obrigação e sem a menor empolgação) trouxe na matéria de capa a divulgação de um ciclo de palestras da Associação Brasileira de Letras aqui no Rio. “Vida Vício Virtude” pretende discutir a atualidade de algumas palavras e suas relações com as mutações nos valores da sociedade contemporânea. Entre os diversos termos-chaves a serem explorados pelos palestrantes - sabedoria, injustiça, intemperança, vergonha e liberdade, etc – a palavra amizade é que me saltou aos olhos. O jornalista Marcelo Coelho, palestrante incumbido do termo, diz algo singelo, meio lugar-comum, porém pertinente, sobre o conceito. “Seria excessivamente pessimista imaginar o ‘fim’ de uma forma de relacionamento tão ampla e autenticamente humana quanto a amizade”, diz ele na matéria.

Não por acaso eu havia retornado de um aprazível almoço (medalhão de frango com arroz à piamontese, hummma delícia!) com pessoas que me são caras. Um seleto e diminuto grupo,é verdade, pois não sou chegada à intimidades em larga escala, prefiro qualidade à quantidade; conforto (entenda-se bem-estar e paz de espírito) ao luxo (entenda-se frivolidades sociais). E conversa vai conversa vem, anedotas daqui e dali e lembranças arrancadas do fundo do baú, um susto. E como todo – e bom – susto que se preza, ele veio seguido de uma suspensão do pensamento, da respiração, e então tudo era só silêncio. Eis que uma forma difusa e vaga de percepção adormecida, porém muito real, entrou em cena. Alí, numa mesa do La Mole, eu fora acometida da sensação, algo inexplicável cuja definição mais próxima a que chego - ainda assim com um pé atrás, pois como diria Oscar Wilde, “definir é limitar” - seria a de uma espécie de tristeza feliz.

Ali, reunida com amigos (embora fossem todas meninas, uso o termo no masculino, pois se aplica a situações mais gerais em que também experimentei a mesma sensação) senti uma paz profunda e a certeza de que estava e estou (estamos) cumprindo misteriosas e inexplicáveis missões. Eu sabia que estava no meu próprio ponto. No caminho de casa, aquela sensação permanecia, bem como permanecia – e aumentava - o desejo de compreende-la mais a fundo e de compartilhá-la com algum possível interlocutor. Muito embora seja necessário reconhecer que através de uma definição, por mais simplória e delimitante que seja, desconhecidos possam formar uma melhor imagem do objeto-sensação em questão, segue o resultado de uma conjectura ousada, pois breve e limitada verbalização de uma emoção:

No ato de sentir- se feliz associa-se a idéia do passageiro que é tudo, do amanhã cheio de interrogações, da exceção que aquilo significa. Pois há uma perda inerente a cada encontro, que desperta a consciência agridoce do não ter na hora do ter. Tristeza feliz é assim, agridoce. Tristeza feliz é a que surge depois de encontros verdadeiros, que prescindem de palavras. Encontros verdadeiros são os que se dão de inteligência para inteligência. Sente-se no ar, na pele, na ponta dos dedos, que eles realizam em cada pessoa a parte delas que ficou pura e melhor, que se sublimou. E a vida segue assim, como um espetáculo de balé ou uma ópera, repleta de amor, drama, encontros, desencontros e sublimação.

Grandes encontros acontecem entre grandes amigos, e nenhum escritor definiu tão bem o que chamo de encontro de inteligências - o reconhecer um amigo - como Oscar Wilde nos primeiros versos de Loucos e Santos: "Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante".